domingo, dezembro 19, 2010

Novo Acordo Ortográfico: como "ESPETAR" a Língua Portuguesa


Em Portugal muitas idiotices acabam por ser impostas por via do hábito e da inércia, optando o cidadão comum tantas vezes por uma situação fatalista, encolhendo os ombros a mais uma nova regra ou lei que foi criada sem o ter em conta. Na verdade, chamar "cidadão" ao habitante de Portugal é geralmente um eufemismo, pois o nosso maior drama será precisamente essa de não termos a noção da nossa cidadania, dos direitos que ela envolve, mas também das responsabilidades que temos em intervir e questionar. Diz-se "Oh , em Portugal é mesmo assim, que se há-de fazer? É tudo uma malandragem a mandar em nós e só nos resta obedecer!". E vai o português e segue com a sua vida quase escravizada, entalado entre as dívidas ao banco e o trabalho precário, com um olho na "bola" (que, já a pensar na sua alienação, não "dá" apenas aos Domingos, como em tempos idos) e outro na telenovela formatada onde, ao contrário da realidade, as personagens vão conseguindo alterar os seus destinos até ao fiinal feliz.
Apesar de tudo isso, sou das pessoas que teimam em questionar o que não se quer contestado só porque "não há tempo a perder" na corrida desenfreada até ao famoso Abismo. E muitas vezes pequenos incidentes do quotidiano fazem-me pensar de novo no que está dado como facto consumado, embora num apenas leve esgravatar salte à vista a estupidez que fundamenta esse facto.
Vem isto a propósito do Novo Acordo Ortográfico (A.O.), agora dito em fase de experimentação em Portugal,mas, como vimos AQUI, já a ser imposto nas Escolas no próximo Ano lectivo.
Num inocente jornal publicitário e gratuito colocado nas caixas do correio pelo país fora, era salientada uma entrevista com o famoso Leonardo Di Caprio. Folheia-se o dito, distraidamente, passa-se os olhos pela entrevista à estrela cinematográfica e o que mais se destaca e fere a vista é desde logo a espantosa ortografia. Ou seja, no mesmo jornal misturam-se artigos ainda obedecendo à "antiga" ortografia com outros já na nova moda desventurosa e sinistra do novo A.O.. Como é o caso da referida entrevista.
Então vejamos. Já nos fazem estremecer palavras como "ator", "ação", "perspetiva" ou "caráter", mas que poderão vir a cair no tal hábito. Por outro lado, não se entende completamente a manutenção de termos como "impacto" (talvez para não julgarmos que se trataria de um antónimo de "pato"), visto que a presença do "c" neste caso nem ajuda a indicar a abertura da vogal (a palavra já é grave, quanto à acentuação), como no "antigo "ACTOR". E. aliás, a origem etimológica é a mesma... Mas é que é uma consoante que se lê, bláblá...(ai aqui já vale...)
Já termos como "afetou" arrepiam ainda mais e nos levam a duvidar como a sua dicção/dição irá sobreviver.
Porém o que mais ridículo surge é o termo "ESPETADOR", numa frase como " ...mas são as personagens que mantêm o ESPETADOR envolvido.". Fica a dúvida sobre que crueldade leva as ditas personagens a "espetar" e onde é que "envolvem" o dito "espetador"!
Consultando diversos dicionários mais ou menos "atualizados", a dúvida persiste. Uns dizem que o termo "espetador" não existe, outros dizem que é o equivalente no Brasil a "espectador", mas tudo remete para esse "arcaico" termo "espectador", se por exemplo quisermos traduzir para outra Língua.
Também vemos que esta palavra foi precisamente uma das mais citadas em debate, aquando da polémica prévia ao assinar do A.O., nomeamente em jornais e na blogosfera, por linguistas, tradutores (por exemplo, Desidério Murcho) e outros especialistas. EM RESUMO: o novo AO permite ambas as grafias espectador/espetador, visto que os brasileiros assim grafaram erradamente por décadas. E a polémica é precisamente pelo que esta opção ambígua do "igual ao litro" deita por terra do famoso argumento de que só desapareceriam as consoantes que não eram PRONUNCIADAS, as chamadas consoantes mudas. O que não se passa, logicamente, com esta palavra ESPECTADOR, onde o "C" é bem "sonoro" e indica a abertura da vogal que a antecede.
É que os assassinos linguísticos que cozinharam este acordo (meramente político!) parecem esquecer que a ortografia não serve apenas para passar ao papel as palavras como são ditas, mas também, ao serem lidas, lembrar/ensinar a forma como DEVEM SER DITAS! Esquecem todas as crianças que ainda vão aprender a ler e para as quais os professores ficarão com menos apoios lógicos e linguísticos para explicar porque algo se diz de uma forma e não de outra. Esquecem todos aqueles milhões de estrangeiros que querem aprender Português e que assim ficarão com mais dúvidas e com mais um argumento para considerar difícil este idioma! Claro que, se aprenderem com um professor brasileiro, que os ensinará a simplesmente abrir TODAS as vogais, o caso estará resolvido (a não ser que tenham de fazer um exame de acesso à Universidade no Brasil, o famoso Vestibular, para o qual terão de empinar uma série de regras absurdas e de pesadelo , sobre a acentuação, para quem não sabe já acentuar graficamente as palavras...na escrita).Portugal pode ficar a "vê-los passar"....
Repito: Isto é um CRIME contra a língua Portuguesa e, como se vê pela pequena amostra do jornalito, já está a criar confusão, pois o novo AO já está a ser aplicado em palavras que estão, segundo este, isentas de serem sujeitas ao decepar de consoantes, pois simplesmente NÃO são mudas! E a regra de "nuns casos desaparece noutros aceita-se a dupla grafia" (tudo para não causar qualquer mossa ou adaptação à forma como os falantes brasileiros já escrevem!) está assim já começar a criar o caos, com uma ortografia que ignora o problema da aprendizagem da Língua, a pronúncia de uma boa parte dos falantes (em Portugal mas também na maioria dos PALOP) e as origens linguísticas que ajudavam a clarificar certas situações. Bem podem comparar com a arbitrariedade da Grafia do Inglês, mas com o mal dos outros podemos bem e não devemos esquecer que a nossa Língua não tem a divulgação comercial e planetária da Língua Inglesa e tem já bastante complexidade a nível da sintaxe, só por exemplo, para dar que fazer a quem a está a aprender como Língua estrangeira!
Por isso não duvidem: a Língua Portuguesa já está a ser devidamente ESPETADA e cozinhada no forno da estupidez dos burocratas e dos criminosos da Cultura!
(ADENDA:Como mencionei em post anterior, sempre achei que deveria haver mais do que uma negociata por detrás desta pressa em impôr o novo AO. E não me enganava,até de forma mais lucrativa do que eu julgava. A verdade à tona vem....Mas como o texto já vai longo, deixarei isso para outra ocasião).
Alergia

2 comentários:

Danilo Nogueira disse...

Aqui no Brasil, fala-se e escreve-se "espectador", com o "c" pronunciado bem claramente. A televisão, com seu constante "telespectador" dá o tom.

Alergia disse...

Obrigada pelo esclarecimento, caro Danilo!
Nesse caso, a tal grafia do "espetador" ainda é mais grave, pois não se adapta a qualquer falante da Língua Portugesa. É o que se chama "ser mais papista que o papa".
Votos de Boas Festas!