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Estamos em janeiro, e janeiro é sempre um mês muito longo, o mês mais longo de todo o ano.
Em 2011, janeiro já começou com todos os sinais nefastos, e o mais nefasto está ainda para vir, esse dia 23, em que vamos entrar em sede vacante da República. É verdade que a República nunca foi uma coisa particularmente entusiasmadora, como também a Monarquia já não o era, desde o final da nossa homérica Idade Média Portuguesa, pelo que o problema não deverá estar no regime, mas, como sempre, no substrato, essa coisa genérica, a que se chama "povo", e que nos vai mantendo, século após século, no pardo cóccix europeu.
Eu pensava que desta feita estaria imune ao ato, o eleitoral, mas a verdade é que o ato é demasiado grave para que dele me alheie, e eu passo a explicar: o problema Cavaco, a doença deste janeiro, o Cavaco, que a si mesmo se descreve como "não político", é isso mesmo: o saloio de Boliqueime, de facto, não se integra na galeria dos políticos, mas, sim, na galeria dos flagelos, e está para as sociedades democráticas, com as devidas reservas da hipérbole, como Hitler esteve para a República de Weimar. Os "cavacos", estes cavacos, são coisas, epifenómenos, objetos, aparentemente alheios aos sistemas, mas que neles se infiltram, os gangrenam, e acabam por levar ao colapso final. O grave deste grave, é que, pela onomástica e pela necessidade taxonómica que sentimos, para nos aliviarmos do insustentável peso do Tempo, essas aberrações culturais acabam por se tornar, pela negativa, nas etiquetas da era que conspurcaram. E assim houve o tempo do Estalinismo, e o Chavismo, e a Era Pinochet, e o nosso muito, muito, miserável salazarismo.
Quando abordo Cavaco, tenho, pois, a consciência, como sempre tive, de que a criatura era a luta para uma vida. Não se tratava de um simples problema político, mas de uma incompatibilidade histórica e existencial: enquanto intelectual e escritor, acho um vexame que a minha cronologia possa, naqueles futuros que não controlamos, ser etiquetada como "fulano de tal, tendo vivido no período [da má moeda] cavaquista".
Sei que nada se pode fazer contra isto, exceto algo de muito elementar, que é grafar a nota de rodapé da biografia: "foi, até ao final da sua vida, um adversário irredutível do Sistema..."
Se há Sistema, neste momento, a hipóstase do Sistema é Cavaco. Resume tudo o que de pior a nossa raça produziu: a mediania, o retorto e o cobarde, o turvo, o bafiento, o retrógrado, o mesquinho, o vingativo, o ressentido, o chicoespertismo, o irrelevante, o pardo, o estagnado, o repressor com surdina, o retraído, o pobre, o miserável e o arrogante, na sua pior forma, já que a ignorância sempre foi arrogante e exaustora dos primeiros planos, lançando para a sombra todas as aspirações acima da baixa mediania.
Dia 23 de janeiro, quando votar, e é indiferente, neste momento, em quem se vote, porque a República, estrangulada e suicidária, já se decidiu lançar num pântano sem descrição, irei votar contra Cavaco, não por razões políticas, mas por razões de dignidade pessoal e histórica: marcar posição, para que sobre o meu curto tempo humano e coletivo, essa sombra possa pairar, e durar, o mínimo possível. Contudo, para a nossa escassa finitude, Cavaco já durou tempo demais: ao completar o seu segundo mandato, se os prodigiosos tratamentos do Professor Lobo Antunes assim o tiverem permitido, terá consumido 20 anos da nossa democracia, ou, no sistema cronológico paralelo, durado meio salazarismo.
Sei que pôr a questão nestes termos pode parecer uma perspetivação pouco ortodoxa, mas não conheço outra, e é esta que me apetece. Sei que é preferível andar a discutir o homem privado Cavaco nas imundícies que o relacionavam com essa coisa execrável chamada BPN, mas o BPN é um pouco como o Casa Pia, um entretimento, um portugal dos pequeninos no qual eles andavam todos, quando não estavam a fazer pior. O BPN é um episódio tardio da enorme devastação que Cavaco Silva provocou no cenário económico, financeiro, social, educacional e cultural, português. Cheguei ao ponto de lhe o desculpar, já que se insere na lógica do colchão, uma coisa entre amigos, que, apesar de se falar na Bolsa, sempre era mais seguro estar de fora da Bolsa, e que fazia parte daquela mesquinhez tacanha que o homem de Boliqueime incarna superlativamente, e que, de forma irredutível, mais uma vez nos afastou dos padrões europeus, aquele sentido chão do pézinho de meia, do dinheiro contado, na forma do meio queque que dava aos netinhos, na "Pastelaria Carrossel", para que eles não ganhassem o mau hábito de comer um bolo inteiro... Se os bolos fossem recicláveis, este meio queque comido até poderia ser sempre o mesmo, como o célebre par único de botas, do Vacão de Santa Comba Dão.
Os crimes do Cavaquismo terão um dia o seu grafar histórico: são uma longa série de arrogâncias, intolerâncias, cobardias, e genocídios culturais, educacionais económicos e sociais. Invariavelmente, revestiram a pele do crime sem castigo, das leonores belezas, que, muito mais gravemente do que os buracos do BPN, cavaram as sepulturas das vítimas do sangue contaminado: também aí, como com Dias Loureiro, um facínora, a quem qualquer regime de bons costumes voltaria, por pudor, a cara, o horror foi perdoado e promovido: fundações, prémios costurados à medida, exílios em repúblicas das bananas, condecorações e conselhos de estado. Tudo isto traduz um regime doente, que vai a sufrágio dentro de duas semanas, e no qual medraram estas figuras, todas elas regidas por uma mesma autocomplacência, que foi a de terem atingido o topo da base, um patamar de aspirações muito especificamente representativo do pior de nós mesmos, com os matizes do que o topo da base foi para cada um deles: presidir a uma fundação, ser ministro, ou presidente de uma miserável república.
Poderia ficar por aqui, mas não fico: o que escrevo é mais intemporal do que este mês de janeiro de 2011. Estas gentes, as mesmas, pardas, dos rastejares de Fátima, dos dinheiros no colchão, dos narizes de batata a pingar ranho em cima de cachecóis pretos, os apreciadores das marisas, dos crentes em que temos o melhor clima do mundo, a serra mais bonita da Europa, a "saudade", que não há em mais nenhum lugar do mundo, exceto em todos, e uma multidão de inúmeros pequenos disparates, que são o reiterado espelho da nossa menoridade, estas gentes vão por cá ficar, depois de terem criado mais uma nódoa no nosso devir político, o "Cavaquismo", a ressoar conjuntamente com o "Salazarismo", para que as gentes lá de fora nos possam olhar, pelo séc. XX e XXI, e dizer, lá estão aqueles povos do sul, incapazes de democracia, e a recriarem permanentes caciquismos, em forma de paternalismos de aldeia com pocilga no andar de baixo, e matriarca de bigode, a cheirar a bacalhau, no andar de cima, depois de séculos de autos de fé e de queimas de passarolas. Como dizem as ratas de sacristia, assim sempre foi, e assim sempre será, porque há uma idiossincrasia de alcáceres-quibires, que nos é atávica. Na altura da escolha, escolhemos sempre o pior, o mais demorado, e o de mais difícil recuperação, mas isso não é novidade: de aqui a 500 anos, como há 500 anos atrás, se estas gentes tivessem pela frente um Cavaco, ou equivalente, lá iriam, cabisbaixas, estender-lhe a mão, para assegurar mais cem anos de afastamento da grande rota do mundo, e de complacente estagnação.
Peço, pois, que me reconheçam o direito de me distanciar, como voltarei a fazê-lo, de cabeça erguida, em 23 de janeiro.
(Estrela cabisbaixa, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Uma Aventura Sinistra", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")
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